Infiltrado na Klan (Spike Lee)

Infiltrado na Klan - Spike Lee
(Blackkklansman, 2018)

O filme tem pouco mais de duas horas de duração, mas pouco se percebe este tempo passar uma vez que o filme é embalado em músicas cheias de groove, com uma plasticidade visual primorosa por conta da fotografia bem desenhada entre espaços de sombra e espaços de luz, uma montagem bem fluida e, além disso, conta com uma direção de arte requintada que nos remete ao clima dos anos 70. “Infiltrado na Klan” é imperdível.  Não sei se por causa da primorosa parte técnica ou pela sutil forma de nos dar um soco no estômago. Ou se as duas coisas juntas. Destaque para a trilha musical composta pelo trompetista Terence Blanchard. Que desde 1991 deu o climão sonoro em 17 filmes dirigidos por Spike Lee. Nesse filme, Blanchard consegue amenizar tensões e intensificar ações. A sintonia do filme é mesmo em torno dessa condição de mesclar gêneros e ritmos. Por alguns é categorizado como comédia, por outros como drama ou até mesmo como filme policial. E isso é genial. Pois para que isso aconteça é preciso que cada departamento funcione em cooperação com o outro, além de um profundo conhecimento da técnica cinematográfica por parte da equipe para reconfigurar as combinações dos elementos fílmicos com tal maestria. Lee estudou cinema na Universidade de Nova Iorque e chegou a ser aluno de Martin Scorcese. Agora leciona na instituição onde se formou. Além de cursar cinema na Tisch (escola de artes da NYU) também cursou artes na Morehouse College, em Atlanta. Seus estudos foram pagos pela sua avó, filha de escrava. Além disso, ela que financiou parte de seu primeiro filme, “Ela quer tudo” de 1986.
Estamos em tempos sombrios, em que a extrema-direita se realinha em diversos países, fingindo querer participar do jogo democrático. “Infiltrado na Klan” parece ser uma pequena brecha nos muros que o discurso de ódio tem construído. O cineasta estadunidense assume em seus filmes a pretensão de trazer para os grandes estúdios da indústria hollywoodiana um pouco de pele preta em destaque. Os problemas da segregação social e da discriminação racial para Spike Lee seriam mais uma questão de raça do que de classe. Revela bem a sua formação como estudante de artes liberais em Atlanta. Com efeito, o produtor do filme Jordan Peele (ao comprar os direitos do livro que inspirou o filme) acertou ao convidar Spike Lee para destilar sua potência cinematográfica em um tema pelo qual sempre se expressa: a questão racial nos Estados Unidos. Em geral, ocupando as telas luminosas com questões sociais e questionando a pontaria dos discursos de ódio, é quando toca o dedo na funda ferida racial estadunidense – e esfrega com álcool – que o cineasta afro-americano consegue nos fazer angustiados e até constrangidos por algumas figuras que ainda perduram em pleno século XXI.
Mais uma vez Spike Lee revisita o muito bizarro “Nascimento de uma Nação” de 1915. Já o tinha feito na década de 1980, em um curta-metragem. Devemos reforçar Para quem não conhece, que na obra de 1915 o cineasta estadunidense David W. Griffith faz uma adaptação do livro The Clansman, escrito por Thomas Dickson, cuja apresentação heróica da organização Ku Klux Klan atordoa. Com quase três horas de duração, usando técnicas de montagem e enquadramento até então pouco exploradas no cinema, Griffith criou uma obra audiovisual icônica. Seja pela sua inovação técnica ao abrir caminho para todo um vocabulário que constitui a linguagem cinematográfica ou pelo conteúdo racista do filme que se passa durante o fim Guerra de Secessão no EUA, em 1865. Neste momento histórico, teve fim a guerra entre os estados do Norte – que queriam acabar com a escravidão – e os estados do Sul – que queriam mantê-la. O que o roteiro de Griffith e Dixon constrói é o caráter salvador da KKK. O conflito principal se dá quando uma mulher branca do Sul é estuprada e morta por um homem negro. Os cavaleiros da organização de supremacistas brancos são retratados como heróis. O encapuzados brancos restauram a paz e expulsam a causa da guerra, a causa da desunião, da segregação: os negros africanos. As implicações sociais e políticas desta ficção não são muito discutidas. O século XIX parece ainda estar entre nós. Dizem que o lançamento do filme inflamou o retorno da Ku Klux Klan no início do século XX e, inclusive, o linchamento em praça pública de Jesse Washington em 1916. Este acontecimento também está em “Infiltrado na Klan”, narrado pelo militante Harry Belafonte. Jesse, agricultor negro de 17 anos, fora condenado pelo estupro e assassinato de uma mulher branca. Belafonte narra os vários detalhes do linchamento e ainda nos dá a ver o desfecho em fotos. As imagens foram feitas por um repórter da época no momento da morte do jovem negro e ainda por cima foram vendidas como cartão postal na época. Mais de 10.000 pessoas presenciaram a isto em tom de comemoração sem ser reprimidos pela policia, que também estava lá. Este é mais um dos fatos reais no filme que parece não ser.
O genocídio de pretos e pretas ainda é negado por figuras como o ex-líder da Ku Klux Klan David Duke (que é interpretado no filme por Topher Grace) e pelo próprio presidente dos Estados Unidos a quem Lee só chama de Agente Laranja. Jamais fala em voz alta o nome de Trump. O slogan da política “América Primeiro” (America First) ecoa e se mostra atual na voz de Donald Trump. O presidente, por sua vez, aparece no final do filme, em uma declaração tendenciosa acerca do ocorrido em Charlottesville quando, um motorista atropelou manifestantes do movimento antirracismo Black Lives Matter (em tradução livre, “Vidas Negras Importam”). O condutor do veículo, um supremacista branco, estava em uma manifestação da extrema-direita nacionalista Unite the Right (Unir a direita), que acontecia também naquele dia. Era 2017 e deu tempo de Lee incluir na montagem do filme cenas que documentaram este crime. Uma mulher morreu e dezenas de pessoas ficaram feridas. Este é um dos socos no estômago que a obra nos dá, garantindo que ninguém esteja sorrindo ao final do filme. Mas o roteiro escrito a oito mãos ganha estrutura e contexto ao nos lançar a uma reflexão: afinal poderíamos conectar crimes de ódio dos anos de 1865, 1915, 1916, 1939, 1970, 2017, 2018 e 2019?
São muitos os alvos de “Infiltrado na Klan”, mas um dos momentos mais consistentes e assertivos do longa alerta para o fato da segregação racial não estar somente na sociedade civil ou nas mãos de justiceiros segregacionistas, mas nas instituições, no maisntream. Acontece em um diálogo entre Ron Stallworth (o policial negro infiltrado na KKK é interpretado pelo filho de Denzel Washington, John David Washington) e o Sargento da polícia, com uma fotografia bem cheia de sombras recortando e marcando o espaço, deixando poucos fachos de luz, o texto que culmina na famosa expressão “Wake up!” (Acorde!). Esta fala está presente em alguns filmes de Lee. Na cena citada, o Sargento diz conhecer pessoas simpatizantes da KKK que estão abandonando a violência e ocupando cargos institucionais, e distribuindo o seu ódio por meio do controle de medidas para ações afirmativas, imigração, crime e reforma tributária. Não basta ser justiceiro e terrorista, deve-se garantir a atuação nas instituições parlamentares e fazer leis e esquemas burocráticos que garantam a segregação. Penso que esta cena conecta não só as datas acima, mas também colabora para a sensação de que este filme extrapola os limites da tela. O roteiro brinca com isso a todo o momento.
A experiência de assistir a um filme fica bem mais instigante e rica quando esta obra consegue costurar o roteiro com o fio da História. Quem pode pensar que seria possível um policial negro se infiltrar na Ku Klux Klan? No final da década de 70, um jovem de vinte e poucos anos se torna o primeiro policial negro da cidade de Colorado Springs, no Colorado. Talvez isso já rendesse um filme ou livro. Mas o que se sucede na vida de Ron stallwoth nos faz achar que seria tudo a mais pura invenção de um roteiro muito criativo: o jovem policial negro – que atuava até então disfarçado em investigações – se infiltra na milícia estadunidense de supremacistas brancos, conhecida historicamente como Ku Klux Klan. Ron Stallworth tem até hoje a sua carteira de membro efetivo da Ku Klux Klan no ano de 1979, e em 2014 relatou estas memórias no livro “Infiltrado na Klan”. Em 2018 é lançada a adaptação cinematográfica deste livro dirigida por Spike Lee. No livro Blackkklansman (Infiltrado na Klan), algumas das memórias de Ron Stallworth, beiram o inacreditável, se não tivessem acontecido mesmo. O detetive manteve a operação por quase uma ano até receber a ordem de não mais dar continuidade. Durante este tempo, enquanto Ron falava ao telefone e se correspondia por cartas com a organização, seu parceiro – que era branco, no filme interpretado por Adam Driver – ia às reuniões e encontros. Ninguém nunca desmascarou os infiltrados. Com isso, eles conseguiram evitar que cruzes fossem incendiadas e inclusive um ataque à bomba em dois bares LGBTQI. Ainda que o roteiro invente situações para estruturar o filme de acordo com princípios básicos da narrativa hollywoodiana, o faz sem descaracterizar a essência do que foi esta experiência para Ron.
Assim sendo, é importante reassaltar que não se trata de aderirmos a uma abordagem que tenha a pretensão de ser real e cobrir os fatos históricos em sua verdade. Talvez uma das situações divertidas no cinema seja este jogo estabelecido entre o caráter documental da ficção e o caráter ficcional do que se documenta como real. De quebra, um dos efeitos colaterais deste jogo é deixarmos de acreditar que existe a verdade como uma coisa única. Todavia, ao nos lançarmos pra este jogo entre real e ficção, nos damos conta de que a ficção está encharcada de realidade na medida em que o pessoal e impessoal se encontram. Quando o que é íntimo reverbera no que é público e vice-versa. Os spoilers e revelações da história desse texto não estão contidas no enquadramento da câmera, assim como não aparecem dentro das margens estabelecidas da tela luminosa. Estão na nossa memória. O filme nos aponta pra isso, na medida em relaciona fatos passados com fatos atuais nos fazendo perceber e escolher o lugar que queremos ocupar nestas histórias.  
A supremacia branca expande o preconceito racial, destilando o seu ódio em cima de negros, mas também de gays, mulheres, judeus e imigrantes. Raça, gênero, classe e origem étnica são faces de uma mesma moeda. A filósofa estadunidense Angela Davis nos lembra que, na atualidade dos EUA, a luta negra serve como um emblema da luta pela liberdade.  Talvez o que chamem de político, militante ou ativista em um filme como este seja justamente o fato de que a obra de Spike Lee nos lembra que a liberdade é mesmo uma luta constante. Contudo, o filme segue sem a pretensão de nos indicar soluções de como agirmos na chamada vida real. Apenas nos convida a escolher com qual fio da história queremos tecer nossa teia de memórias. O cinema não seria uma forma de vermos o mundo, mas de revermos as coisas do mundo a partir de outras perspectivas. Não para mudar o mundo, mas para mudar a ideia de como a vida pode ser vivida. Assim, um filme não atua diretamente para mudar a história, mas sim pode nos localizar enquanto agentes históricos, afinal a história quem faz somos nós, a partir de nossas escolhas, nossos hábitos e relações sociais. Enfim, o que é privado e individual não se restringe à nossa vida íntima e as experiências se tornam públicas e coletivas a partir de nossas ações e trocas efetuadas no cotidiano. O filme pode continuar a acontecer também quando as luzes da sala se acendem e a tela luminosa se apaga. 

Cães de Aluguel - Quentin Tarantino


Cães de Aluguel é um filme de Quentin Tarantino. Quem? Aquele cujos filmes são um banho de sangue grotesco e tosco. Chegam a ser cômicos e até infantis de tão surreais. Podemos falar em anedota. O próprio Tarantino recorre a anedotas diversas vezes em seus diálogos. Além disso, seus filmes têm sempre ótimas trilhas musicais. Podemos, grosso modo, deixar-lhe no Lado B dos enredos policiais, ao lado principalmente de Robert Rodriguez[1]. Em termos da trama, nada deixa a desejar aos filmes de Martin Scorsese, Brian de Palma ou Francis Ford Coppola. Somemos a isso inúmeras referências da cultura pop estadunidense. E insisto: a ótima escolha musical que Tarantino usa em seus filmes. E no que decorre esta mistura toda?Cães de Aluguel é o filme de estreia deste cineasta, logo no início da década de 90. Este é um momento para o cinema em que as mudanças propostas nas décadas de 50 a 70 já se consolidam e a efervescência por rupturas de padrão já está arrefecida. Há um consenso entre espectadores e cineastas de que o cinema é ilusão. O que se busca são roteiros inovadores, originais e, principalmente, lucrativos. Na época o cinema norte-americano já vivia o momento dos blockbusters. É neste cenário que Tarantino realiza este filme de baixíssimo orçamento, o que o coloca no hall dos filmes independentes de sucesso. Ainda que indepente, teve uma boa margem de lucro e chegou a ir ao Festival de Sundance. Com efeito, o grande mérito do filme reside justamente na forma como foi elaborada a montagem. O roteiro é bem simples e comum a filmes policiais. Um grupo de seis ladrões rouba uma joalheria e as coisas não saem como planejado. Eis que dois deles começam a pensar na hipótese de uma traição. Alguém avisou à polícia que eles estariam lá? Num galpão abandonado – o ponto de encontro – é onde se passa a maior parte do filme. Com efeito, o que faz a diferença é justamente a narrativa não-linear da qual Tarantino faz uso e abuso . Não seguir a ordem natural dos fatos se torna então uma das marcas registradas do cineasta, o que viria a se consagrar com Pulp Fiction, seu filme seguinte. E isso é a única coisa que prende ao filme.Trata-se de um filme fácil de assistir. Os diálogos são acelerados e dinâmicos e repletos de referências à cultura pop. Muitos acusam Tarantino de copiar cenas de outros filmes embora ele diga que se tratam de homenagens. Homenagem ou cópia, Tarantino é claramente um cineasta da geração do excesso de informações. O que o diretor faz com toda essa informação? Captura por meio da câmera. Desde a primeira cena – uma criativa discussão sobre a música “Like a Virgin” de Madonna – que as citações e referências recheiam os diálogos nervosos e cheios de palavrões.  Entretanto ele não elabora acerca dos homens, nem da sociedade, nem da violência. Talvez apenas elabore acerca de gorjetas. Ele apenas joga elementos de filmes, musicas e até quadrinhos livremente na tela. È um cineasta que prevê espectadores bem informados. Mas só. Parece apenas consumir a cultura, como quem devora um suculento sanduíche de redes de fast food. Não discute, não reflete. Só jorra sangue. A cena inicial é a mais consistente do filme. De resto, fica preso no vazio.Dizem que os seres moralmente fracos apelam para a violência[2]. Mesmo a pequena produção que foge da uniformização dos processos cinematográficos, pode se perder. Na cinematografia de Tarantino sobra imaginação para ele e falta ao espectador. Tudo é muito explícito e de alguma forma já está pronto. Não há o que refletir, pensar, imaginar. Apenas receber os estímulos visuais e sonoros que vem da tela praticamente prontos. Um bom exemplo de um filme que contém cenas de violência apenas implicitamente é o L’argent, de Robert Bresson. Na bela sequência em que o jovem injustiçado mata a família de sua amiga à machadadas, não vemos nada, apenas pés, portas entre abertas e o latido do cachorro sugerem os assassinatos. Cinema é busca e principalmente imaginação.  O espectador também deve ter este direito – o de imaginar – e não só o Diretor. Se não fossem as elipses temporais o filme seria um mero espetáculo de violência gratuita. O que prende e cativa é justamente a forma como os enredos são montados. Enquanto um contador de historias, Tarantino merece mérito pela forma como escolhe para enquadrar e direcionar sua história. Não é só a narrativa não-linear que cativa o espectador. A forma como enquadra é o que vale à pena. Mescla movimentos de câmera com câmera parada. Uma linda cena é uma em que o Mr. Orange – em sua casa – tenta decorar uma história fictícia para ser verossímil em sua atividade como infiltrado na gangue. Enquanto a câmera está fixa, o personagem entra e sai de quadro. Falando em voz alta, quando sai de quadro fica apenas sua voz (e dois pôsteres de comic books). Será que Tarantino se inspirou em Ozu para tal cena? Outro mérito é o fato de que o diretor usa sabiamente o a artifício de plano e contra-plano em apenas alguns diálogos, e ainda assim o faz explorando a profundidade de campo e outros elementos cênicos; assim consegue usar o artifício tão usado e desgastado em diálogos, sem que este se perca na monotonia de imagens previamente determinadas pelo Diretor, que direciona e manipula o olhar do espectador e acaba por não permitir uma interação com o quadro em campo. Além disso, usa bastante Steadicam, dando movimento e continuidade aos planos.   Não podemos deixar de falar dos atores. Todos estão incrivelmente entregues à interpretação. Na cena em que tortura o policial refém, Mr. Blonde (embalado pela clássica “Stuck in the Middle” do Stealers Wheel) Michael Madsen chega a contagiar.  Fora isso, o filme se enquadra em um mero espetáculo. Puro entretenimento vazio e superficial, apesar dos belos direcionamentos de ritmo e enquadramento. O final é um clássico de sua cinematografia; um mata o outro, quase todos morrem. É um filme quem diverte a quem não tem estômago fraco. Melhor alugar Bastardos Inglórios, filme em que Tarantino faz uma linda homenagem ao Cinema e ainda por cima muda os rumos da história – como muitos de nós já imaginaram – e mata Hitler. Ou então ouvir Madonna, a rainha do pop, diversão garantida!


[1] Robert Rodriguez é um cineasta norte-americano que realiza filmes de baixo orçamento, mas com muito esguicho de sangue também.[2] Neste espaço não pretendemos julgar o caráter de Tarantino, apenas lançar alguma luz acerca de seu filme.

8 1/2 - Frederico Fellini


Metacinema. MetaFellini. Falar de 8 ½ é falar de cinema,  mas é também falar de Fellini. Inclusive é sabido que este filme é uma espécie de autobiografia. De fato o Cinema não é citado por Fellini apenas neste filme. E nem Fellini é citado por ele mesmo pela primeira vez. Entretanto o caráter autorreferencial que perpassa toda a obra de Fellini é parte de seu dom: escrever textos por imagens. Seus filmes então se tornam imagens do pensamento. Eisenstein já dizia, na década de 20, que a “a essência do Cinema não está nas imagens, mas no texto visual que construímos com elas”. E Fellini encontra estes elementos que irá incorporar aos seus textos/filmes, no cotiadiano.
            Com efeito, este filme em particular, carrega uma autorreferência muito grande. Marcelo Mastroiani aparece como seu alter ego. Inclusive usa os mesmos óculos e chapéu que Frederico. O que não quer dizer que seja uma cópia. Talvez isso fique bem claro quando Fellini assume seu apreço pela ilusão, pela fantasia. Se distancia de qualquer naturalismo. Fernando Pessoa que nos diz: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”. Assim se faz um Cinema ligeiramente platônico, quando o sensível copia o inteligível, nos levando à imitação. Contudo, faltou e Platão a poesia. O que não faltou à Fellini. O filme é a verdade e a mentira.
            Em 8 ½ acompanhamos a trajetória de Guido, um diretor de cinema famoso, porém em um período de crise criativa. Não consegue começar o processo de filmagem, ao passo que vai piorando conforme a pressão do produtor. No final do filme Guido lamenta seu fracasso no momento e desabafa que somente queria fazer um filme honesto, sem mentiras.
            Fellini é de um momento do Cinema (bem como da sociedade em geral) em que cineastas buscam romper com a padronização do cinema à La Hollywood. É inegável que a possibilidade de se narrar histórias por meio de um dispositivo (a câmera cinematográfica) é genial. Scorcese (que fora amigo e admirador de Fellini) diz, em uma entrevista a um programa televisivo norte-americano, “que apesar da grande contribuição de D.W. Griffith para o vocabulário do cinema, temos pessoas que levam o vocabulário à um outro nível”. Fellini faz uma nova combinação de elementos fílmicos. Mas de uma forma que só ele o faz. Doravante, a cinematografia felliniana é associada à fantasia, à ilusão, à alegoria. O espaço-tempo fílmico onírico em Fellini, busca algo para além da realidade, no entanto nela mesma. Para Freud é justamente no sonho que podemos transgredir. Acessar o sonho é burlar regras. O sonho (para a psicanálise) é a manifestação do inconsciente. Que recalca e esconde os verdadeiros desejos do indivíduo. O inconsciente é justamente onde está o real. Ao passo que imaginário é o mundo que nos cerca – quando acordados. Contudo devemos ressaltar que mesmo que assuma um caráter alegórico em suas obras, Fellini o faz a partir de regras. Tanto que o autor/diretor não acredita em liberdade poética total. Assim o criador tenderia ao nada, ao vazio. Entende o artista como um transgressor. E para transgredir você precisa de regras. Devaneios são vazios A essência deve sempre existir na composição do texto.
            Ainda que o cineasta seja um mentiroso, para Fellini ele é mais. O cineasta é um mágico. Há algo de verdadeiro e mentiroso. O mágico no filme é também telepata. Faz a ponte entre a mente de Guido (o roteiro, a lembrança) e o quadro (tela de projeção). Contudo, só quem sabe à que as palavras na tela realmente se referem é Guido. Para os outros parece algo desconexo. Para o espectador também, até que o autor nos revela a origem da estranha expressão “ASA NISI MASA”. Uma lembrança da infância de Guido. O que evidencia o caráter de que uma imagem transcende a prisão da mensagem. O espectador ativo (lembremos de Brecht) cria sua própria relação com a imagem vivenciada. O cinema partilha subjetividades. Assim como para o poeta mexicano Octavio Paz, “a linguagem na poesia rompe a sua qualidade comunicativa”. Não apenas representa a realidade. Assim temos no cinema de Fellini o grande mérito de uma criação fílmica que não apresenta, não representa, mas transgride a imagem e vai além.
            A tudo isso acrescentemos a forma como a câmera se move, parecendo passear pelo quadro, deslizando. Em fotos de sets de Fellini, nunca faltam trilhos para os travellings bailantes. A trilha musical que embala é notável e clássica. Elaborada por Nino Rota, que é parceiro de Fellini também em outros filmes. Rota compôs clássicos para o cinema não só Felliniano, mas também outros cineastas. Para Scorcese, por exemplo, em “O Poderoso Chefão”. Clássica trilha também. Enfim, os quadros compostos por todos estes elementos faz de 8 ½ um filme imperdível, principalmente para os amantes da arte cinematográfica. A única coisa que falta mesmo é Giulieta Masina (inesquecível em “Julieta dos Espíritos”). Uma bela parceria com o cineasta dentro e fora das telas.         

Fahrenheit 451 - Françoise Truffaut


           'E a primeira vez que vemos um Truffaut em technicolor. 'E a única vez em que vemos um Truffaut em inglês. Neste filme vemos um Truffaut, mais uma vez, adaptando um livro para um roteiro de cinema. O adaptado livro inspira um filme homônimo: “Fahrenheit 451”. Foi escrito por Ray Bradbury em 1953; este autor é bastante conhecido no mundo da ficção científica. Chegou a ajudar e criar projeto para os parques da Disney nos EUA e na França. Mas em sua lápide[1] pediu que fosse marcado “Autor de Fahrenheit” – dizem por aí. Seria um pedido pra que não esqueçamos os livros? Seria um saudosista? Ele leria o “Homem Unidimensional” de – Herbert Marcuse – em um tablet? Acho que eu seria este livro caso conseguisse fugir com um, como acontece no filme...  Ou seria algum livro de poemas da Florbela Espanca. Quem ao ver o filme não pensou em que livro se tornaria?
            Com efeito, não devemos esquecer que no ano em que foi escrito, a mídia estava em um clima de reconstrução. Afinal, o clima de reestruturação pós-guerra delimita novos rumos ideológicos. Foi um período historicamente marcado por diversos movimentos políticos de libertação de regimes fascistas e ditatoriais. Condicionar o imaginário popular era uma das diretrizes do “mass media”. Alto desenvolvimento tecnológico e uma industrialização de tudo. A televisão se torna uma vitrine. Ao mesmo tempo em que se disseminavam as divas do Cinema Norte-americano, por exemplo: Marilyn Monroe, Liz Taylor, Audrey Hepburn, Ava Gardner, Grace Kelly e Rita Hayworth.
            Já nos créditos iniciais o autor/ cineasta, Truffaut mostra sua filiação à Nouvelle Vague, bem como o fato de ser um dos pioneiros a defender e pensar o cinema como obra de um autor[2]. Além de não usar cartelas escritas nos créditos iniciais, e sim uma voz off (quebrando um pouco as referencias usuais); faz o que dizem que os cineastas fazem: pensa por imagens. Simplesmente começar o filme com stills de antenas, é traduzir em imagem parte do argumento do livro pelo seu autor do livro[3].  Depois das antenas, os primeiros enquadramentos do filme – acompanhar o carro dos bombeiros – parecem bastante condizentes e previsíveis; mas logo na cena seguinte – no apartamento a ser revistado pelos bombeiros – usa-se um zoom em etapas, fragmentado e misterioso. Voltando à questão dos percursos nas imagens: por exemplo, pode-se perceber que os enquadramentos escolhidos para os trajetos e percursos no filme são em linha reta e por trilhas, o que nos remete à uma maneira cinematográfica de expressar uma vida cerceada por um regime totalitarista. Mais uma vez pensando por imagens.
            Ao longo do filme vemos o Truffaut da Nouvelle Vague, mas não o Truffaut de Godard. Isso porque, ainda que Truffaut utilize artifícios de montagem, ritmo, enquadramentos e estética, tal qual o fez na Nouvelle Vague, fica cada vez mais explanado o distanciamento do seu cinema e o de Godard. Enquanto Godard experimenta e aponta para o devir de uma imagem; Truffaut parte para ser um belo contador de histórias. Mas sem muita ousadia. Utiliza a cartilha gramatical cinematográfica brilhantemente, mas não ousa. Busca um cinema das sensações. A busca em criar uma atmosfera de suspense é tanta que temos como músico do filme ninguém menos do que o criador da trilha de Psicose (Bernard Hermann). Vale ressaltar que Hitchcock era o ídolo de Truffaut.
            Eis que começa a história. Que é altamente atual. Naquela época, o totalitarismo era mais revelado. Enquanto hoje em dia o totalitarismo é velado. Mas enfim, o encontro com Clarisse já é tenso. Ela fala sem parar, e é professora. Impossível ela não ler. Mas ela não confessa em nenhum momento ser uma leitora. E o espectador só vai ter certeza mais tarde; embora já aguardasse tal informação. Este encontro, na verdade já mexe com o bombeiro atiçador de fogo Montag. Ela quer saber porque ele queima livros...

CLARISSE
Diga-me,
porque queima livros?

MONTAG
O quê?
Bem, é um trabalho
como qualquer outro.
[...]

CLARISSE
- Então não gosta de livros?

MONTAG
- Gosta da chuva?

CLARISSE
- Sim, adoro-a.

MONTAG
Os livros apenas são... lixo.
Não têm interesse nenhum.

CLARISSE
Então, porque é que ainda há
pessoas que os lêem sendo tão perigoso?

MONTAG
Precisamente porque é proibido.

CLARISSE
Porque é que é proibido?

MONTAG
Porque faz as pessoas
ficarem descontentes.

CLARISSE
Acredita nisso, realmente?

MONTAG
Oh, sim. Os livros
alteram as pessoas.
Tornam-nas anti-sociais.

CLARISSE
Acha que eu
sou anti-social?

MONTAG
Porque pergunta?

CLARISSE
Bem... sou professora.

Este diálogo é incrível e, no final das contas nos leva a perceber que o mesmo motivo que faz com que os livros sejam condenados, é o que faz Montag tomar gosto pela leitura. O papel da cultura para Jose Martí é permitir que sejamos livres. ‘Um pueblo de hombres educados será siempre um pueblo de hombres libres.” Neste lugar fictício até os quadrinhos são sem palavras.
Não demora muito pra que o quase promovido bombeiro passe a se interessar por palavras. È inevitável – como espectador – não tentar ler todos os títulos dos livros com destino às cinzas. E agora também dos que Montag elege para leitura. O primeiro é David Copperfield de Charles Dickens. “Capítulo Um. Eu Nasci. Entre ser eu o herói da minha própria vida, ou essa posição ser ocupada por outra pessoa, estas páginas o irão mostrar." Conforme ele lê o espectador se torna o próprio Montag. E o próprio Montag leitor vira David Copperfield... A câmera cada vez aproxima do livro. È eficiente a forma com que Truffaut busca envolver o espectador com sua história. Assim como o leitor se torna o livro...
            Um povo sem escrita é um povo sem memória. E um dos símbolos da memória é a biblioteca. O escritor argentino Jorge Luis Borges cita em um seminário a Biblioteca de Alexandria como “memória da humanidade”. De fato, não podia deixar de ter uma biblioteca no filme. E é na casa da professora Clarisse. A discussão que se trava entre Montag e o General do quartel é ótima. O General já discursa contra os livros: “Livros não dizem nada”. Mas vemos um exemplar de “Madame Bovary”. O chefe dos bombeiros ainda critica a filosofia e diz que esta é pior do que os romances, pois filósofos julgam saber mais. Compara a filosofia à efemeridade da moda. Somente haverá felicidade caso todos em uma sociedade forem iguais, diz o general. Dentre todos os livros que devem ser queimados, claro não podia deixar de ter “Mein Kampf” como menção aos regimes ditatoriais. Pró-liberdade, temos “Joana D’arc”. O livro aparece mais de uma vez na fogueira de letrinhas na casa da professora. A senhora morre “na fogueira”, à semelhança das mulheres consideradas bruxas durante a inquisição, e de Joana D’Arc. Não menos curioso é o fato de notarmos um exemplar da Carriere du Cinema em meio às chamas. Irmãos Karamazov e Lolita também viram cinzas.
            É até previsível que a mulher de Montag o tenha denunciado. Ainda mais depois que Montag fez uma amiga dela chorar em sua casa ao ler um livro. A mulher é a parte dos cidadãos amansados pelos ecrãs (televisões). Viciada em pílulas ora estimulantes, ora calmantes, a esposa de Montag representa o oposto de Clarisse. A apatia e aceitação.
Mas o grande momento pra mim se dá quando o ex-bombeiro quase promovido que atiçava fogo nos (subversivos) livros, revela qual sua nova identidade: “Tales Of Mistery And Imagination” de Edgar Allen Poe. Existe a expressão “decorei o texto de “cór” (coeur)”. Quer dizer de coração; “couer” é coração em francês. O fogo é enfim libertador...



[1] Faleceu neste ano, de 2012. Em 6 de junho.
[2] Cinema de autor foi uma teoria defendida pelos integrantes da nouvelle vague, cuja figura do Diretor comanda todas as áreas, de modo a deixar uma marca própria em cada filme.
[3] Ray Bradbury declarou certa vez que seu livro pretende alertar para a diminuição de leitores em detrimento de telespectadores.