Infiltrado na Klan - Spike Lee
(Blackkklansman,
2018)
O filme tem pouco mais de duas
horas de duração, mas pouco se percebe este tempo passar uma vez que o filme é
embalado em músicas cheias de groove,
com uma plasticidade visual primorosa por conta da fotografia bem desenhada
entre espaços de sombra e espaços de luz, uma montagem bem fluida e, além disso, conta com uma direção de arte
requintada que nos remete ao clima dos anos 70. “Infiltrado
na Klan” é imperdível. Não sei se por
causa da primorosa parte técnica ou pela sutil forma de nos dar um soco no
estômago. Ou se as duas coisas juntas. Destaque para a trilha musical composta
pelo trompetista Terence Blanchard. Que desde 1991 deu o climão sonoro em 17
filmes dirigidos por Spike Lee. Nesse filme, Blanchard consegue amenizar
tensões e intensificar ações. A sintonia do filme é mesmo em torno dessa
condição de mesclar gêneros e ritmos. Por alguns é categorizado como comédia,
por outros como drama ou até mesmo como filme policial. E isso é genial. Pois
para que isso aconteça é preciso que cada departamento funcione em cooperação
com o outro, além de um profundo conhecimento da técnica cinematográfica por
parte da equipe para reconfigurar as combinações dos elementos fílmicos com tal
maestria. Lee estudou cinema na Universidade de Nova Iorque e chegou a ser
aluno de Martin Scorcese. Agora leciona na instituição onde se formou. Além de
cursar cinema na Tisch (escola de artes da NYU) também cursou artes na
Morehouse College, em Atlanta. Seus estudos foram pagos pela sua avó, filha de
escrava. Além disso, ela que financiou parte de seu primeiro filme, “Ela quer
tudo” de 1986.
Estamos
em tempos sombrios, em que a extrema-direita se realinha em diversos países,
fingindo querer participar do jogo democrático. “Infiltrado na Klan” parece ser
uma pequena brecha nos muros que o discurso de ódio tem construído. O cineasta
estadunidense assume em seus filmes a pretensão de trazer para os grandes
estúdios da indústria hollywoodiana um pouco de pele preta em destaque. Os
problemas da segregação social e da discriminação racial para Spike Lee seriam
mais uma questão de raça do que de classe. Revela bem a sua formação como
estudante de artes liberais em Atlanta. Com efeito, o produtor do filme Jordan
Peele (ao comprar os direitos do livro que inspirou o filme) acertou ao
convidar Spike Lee para destilar sua potência cinematográfica em um tema pelo
qual sempre se expressa: a questão racial nos Estados Unidos. Em geral, ocupando
as telas luminosas com questões sociais e questionando a pontaria dos discursos
de ódio, é quando toca o dedo na funda ferida racial estadunidense – e esfrega
com álcool – que o cineasta afro-americano consegue nos fazer angustiados e até
constrangidos por algumas figuras que ainda perduram em pleno século XXI.
Mais
uma vez Spike Lee revisita o muito bizarro “Nascimento de uma Nação” de 1915. Já
o tinha feito na década de 1980, em um curta-metragem. Devemos reforçar Para
quem não conhece, que na obra de 1915 o cineasta estadunidense David W.
Griffith faz uma adaptação do livro The
Clansman, escrito por Thomas Dickson, cuja apresentação heróica da
organização Ku Klux Klan atordoa. Com quase três horas de duração, usando
técnicas de montagem e enquadramento até então pouco exploradas no cinema,
Griffith criou uma obra audiovisual icônica. Seja pela sua inovação técnica ao
abrir caminho para todo um vocabulário que constitui a linguagem
cinematográfica ou pelo conteúdo racista do filme que se passa durante o fim
Guerra de Secessão no EUA, em 1865. Neste momento histórico, teve fim a guerra
entre os estados do Norte – que queriam acabar com a escravidão – e os estados
do Sul – que queriam mantê-la. O que o roteiro de Griffith e Dixon constrói é o
caráter salvador da KKK. O conflito principal se dá quando uma mulher branca do
Sul é estuprada e morta por um homem negro. Os cavaleiros da organização de
supremacistas brancos são retratados como heróis. O encapuzados brancos
restauram a paz e expulsam a causa da guerra, a causa da desunião, da
segregação: os negros africanos. As implicações sociais e políticas desta
ficção não são muito discutidas. O século XIX parece ainda estar entre nós.
Dizem que o lançamento do filme inflamou o retorno da Ku Klux Klan no início do
século XX e, inclusive, o linchamento em praça pública de Jesse Washington em
1916. Este acontecimento também está em “Infiltrado na Klan”, narrado pelo
militante Harry Belafonte. Jesse, agricultor negro de 17 anos, fora condenado
pelo estupro e assassinato de uma mulher branca. Belafonte narra os vários
detalhes do linchamento e ainda nos dá a ver o desfecho em fotos. As imagens foram
feitas por um repórter da época no momento da morte do jovem negro e ainda por
cima foram vendidas como cartão postal na época. Mais de 10.000 pessoas
presenciaram a isto em tom de comemoração sem ser reprimidos pela policia, que
também estava lá. Este é mais um dos fatos reais no filme que parece não ser.
O
genocídio de pretos e pretas ainda é negado por figuras como o ex-líder da Ku
Klux Klan David Duke (que é interpretado no filme por Topher Grace) e pelo
próprio presidente dos Estados Unidos a quem Lee só chama de Agente Laranja. Jamais
fala em voz alta o nome de Trump. O slogan da política “América Primeiro” (America First) ecoa e se mostra atual na
voz de Donald Trump. O presidente, por sua vez, aparece no final do filme, em
uma declaração tendenciosa acerca do ocorrido em Charlottesville quando, um
motorista atropelou manifestantes do movimento antirracismo Black Lives Matter (em tradução livre,
“Vidas Negras Importam”). O condutor do veículo, um supremacista branco, estava
em uma manifestação da extrema-direita nacionalista Unite the Right (Unir a direita), que acontecia também naquele dia.
Era 2017 e deu tempo de Lee incluir na montagem do filme cenas que documentaram
este crime. Uma mulher morreu e dezenas de pessoas ficaram feridas. Este é um
dos socos no estômago que a obra nos dá, garantindo que ninguém esteja sorrindo
ao final do filme. Mas o roteiro escrito a oito mãos ganha estrutura e contexto
ao nos lançar a uma reflexão: afinal poderíamos conectar crimes de ódio dos
anos de 1865, 1915, 1916, 1939, 1970, 2017, 2018 e 2019?
São
muitos os alvos de “Infiltrado na Klan”, mas um dos momentos mais consistentes
e assertivos do longa alerta para o fato da segregação racial não estar somente
na sociedade civil ou nas mãos de justiceiros segregacionistas, mas nas
instituições, no maisntream. Acontece
em um diálogo entre Ron Stallworth (o policial negro infiltrado na KKK é
interpretado pelo filho de Denzel Washington, John David Washington) e o
Sargento da polícia, com uma fotografia bem cheia de sombras recortando e
marcando o espaço, deixando poucos fachos de luz, o texto que culmina na famosa
expressão “Wake up!” (Acorde!). Esta
fala está presente em alguns filmes de Lee. Na cena citada, o Sargento diz
conhecer pessoas simpatizantes da KKK que estão abandonando a violência e
ocupando cargos institucionais, e distribuindo o seu ódio por meio do controle
de medidas para ações afirmativas, imigração, crime e reforma tributária. Não
basta ser justiceiro e terrorista, deve-se garantir a atuação nas instituições
parlamentares e fazer leis e esquemas burocráticos que garantam a segregação. Penso
que esta cena conecta não só as datas acima, mas também colabora para a
sensação de que este filme extrapola os limites da tela. O roteiro brinca com
isso a todo o momento.
A
experiência de assistir a um filme fica bem mais instigante e rica quando esta
obra consegue costurar o roteiro com o fio da História. Quem pode pensar que
seria possível um policial negro se infiltrar na Ku Klux Klan? No final da
década de 70, um jovem de vinte e poucos anos se torna o primeiro policial
negro da cidade de Colorado Springs, no Colorado. Talvez isso já rendesse um
filme ou livro. Mas o que se sucede na vida de Ron stallwoth nos faz achar que seria
tudo a mais pura invenção de um roteiro muito criativo: o jovem policial negro
– que atuava até então disfarçado em investigações – se infiltra na milícia
estadunidense de supremacistas brancos, conhecida historicamente como Ku Klux
Klan. Ron Stallworth tem até hoje a sua carteira de membro efetivo da Ku Klux
Klan no ano de 1979, e em 2014 relatou estas memórias no livro “Infiltrado na
Klan”. Em 2018 é lançada a adaptação cinematográfica deste livro dirigida por
Spike Lee. No livro Blackkklansman (Infiltrado
na Klan), algumas das memórias de Ron Stallworth, beiram o inacreditável, se
não tivessem acontecido mesmo. O detetive manteve a operação por quase uma ano
até receber a ordem de não mais dar continuidade. Durante este tempo, enquanto
Ron falava ao telefone e se correspondia por cartas com a organização, seu
parceiro – que era branco, no filme interpretado por Adam Driver – ia às
reuniões e encontros. Ninguém nunca desmascarou os infiltrados. Com isso, eles
conseguiram evitar que cruzes fossem incendiadas e inclusive um ataque à bomba
em dois bares LGBTQI. Ainda que o roteiro invente situações para estruturar o
filme de acordo com princípios básicos da narrativa hollywoodiana, o faz sem
descaracterizar a essência do que foi esta experiência para Ron.
Assim sendo, é importante
reassaltar que não se trata de aderirmos a uma abordagem que tenha a pretensão
de ser real e cobrir os fatos históricos em sua verdade. Talvez uma das
situações divertidas no cinema seja este jogo estabelecido entre o caráter
documental da ficção e o caráter ficcional do que se documenta como real. De
quebra, um dos efeitos colaterais deste jogo é deixarmos de acreditar que
existe a verdade como uma coisa única. Todavia, ao nos lançarmos pra este jogo
entre real e ficção, nos damos conta de que a ficção está encharcada de
realidade na medida em que o pessoal e impessoal se encontram. Quando o que é
íntimo reverbera no que é público e vice-versa. Os spoilers e revelações da história desse texto não estão contidas no
enquadramento da câmera, assim como não aparecem dentro das margens
estabelecidas da tela luminosa. Estão na nossa memória. O filme nos aponta pra
isso, na medida em relaciona fatos passados com fatos atuais nos fazendo
perceber e escolher o lugar que queremos ocupar nestas histórias.
A supremacia branca expande o
preconceito racial, destilando o seu ódio em cima de negros, mas também de gays,
mulheres, judeus e imigrantes. Raça, gênero, classe e origem étnica são faces
de uma mesma moeda. A filósofa estadunidense Angela Davis nos lembra que, na
atualidade dos EUA, a luta negra serve como um emblema da luta pela
liberdade. Talvez o que chamem de
político, militante ou ativista em um filme como este seja justamente o fato de
que a obra de Spike Lee nos lembra que a liberdade é mesmo uma luta constante.
Contudo, o filme segue sem a pretensão de nos indicar soluções de como agirmos
na chamada vida real. Apenas nos convida a escolher com qual fio da história
queremos tecer nossa teia de memórias. O cinema não seria uma forma de vermos o
mundo, mas de revermos as coisas do mundo a partir de outras perspectivas. Não
para mudar o mundo, mas para mudar a ideia de como a vida pode ser vivida. Assim,
um filme não atua diretamente para mudar a história, mas sim pode nos localizar
enquanto agentes históricos, afinal a história quem faz somos nós, a partir de
nossas escolhas, nossos hábitos e relações sociais. Enfim, o que é privado e
individual não se restringe à nossa vida íntima e as experiências se tornam
públicas e coletivas a partir de nossas ações e trocas efetuadas no cotidiano. O
filme pode continuar a acontecer também quando as luzes da sala se acendem e a
tela luminosa se apaga.