O Anticristo (Lars Von Trier) - Notas sobre como a violência atinge o corpo da mulher

O Anticristo - Lars Von Trier


 Como o próprio Lars Von Trier fala acerca da elaboração de “Anticristo”; não há explicação concreta sobre o que o autor pretende expressar com esta obra. Trier assina a direçao e o roteiro do longa. Como toda a obra de arte, não pode ser  ser interpretada sem estar de acordo com a perspectiva do leitor/espectador. Posto que compartilho da mesma concepção da arte, parto em direção a uma reflexão acerca do tema que ficou – aos meus sentidos – evidente em “Anticristo”: O que é para a mulher ser uma mulher? Lembrando que vivemos em tempos que o não-binarismo é indispensável para entendermos a diversidade. Com isso,o substantivo mulher ganha outros contornos em relação ao histórico que sempre deu o sentido ao adjetivo mulher.
 No presente texto vamos nos ater apenas à mulher da sociedade patriarcal Ocidental. A mulher foi historicamente reclusa à condição de dona-de-casa, mãe e esposa dedicada; propriedade privada como nos diz Engels em seu livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”. A mulher contemporânea já tem a possibilidade de quebrar as paredes do lar e trabalhar na rua. Começa então uma competição desenfreada para então se igualar aos homens e até mesmo ocupar o seu lugar. No lugar de esposa entra uma mulher que se diz bem resolvida sexualmente ao negar qualquer tipo de relacionamento que possa envolver algo menos fugaz e volátil; em tempos hiper-modernos ninguém é de ninguém e todo mundo é de todo mundo. Afinal, nada mais arrebatador e humilhante do que o amor. Ninguém quer sair perdendo hoje em dia. 
Pois bem, passados quase quarenta e dois anos da (quase) queima de sutiãs em praça pública em protesto à condição de mulher homogênea dos anos 60, as mulheres não estão nem em um extremo nem em outro. Se encontram em um limbo perdidas. Limbo este onde sempre estiveram. Afinal a questão da libertação da mulher não está no social e sim no privado. No oculto, no particular, nas nossas casas. Está no que há de obscuro no desejo feminino. E é isto que podemos pensar e trabalhar em “Anticristo”. O filme é polêmico e suscita reações diversas, mas em sua maioria asco. Lars Von Trier está sempre tentando provocar. E em suas obras não deixa de nos colocar frente à frente com o ser humano que, na verdade, muitos preferem esquecer que existe. O que se torna um tabu é mostrar o ser humano violento como sabemos que ele pode ser – e o é. Ou em Dogville não é chocante saber que aquela frágil jovem que fugia de seu pai tirânico irá servir de escrava sexual para os homens daquele vilarejo que parecia ser tão acolhedor? Em "Anticristo" o público se constrange não só com as cenas de sexo em plano detalhe, mas principalmente com as cenas de violência. 
 "Anticristo" nos narra a história de um casal que perde o filho pequeno de forma trágica. A mulher – que é muito bem construída por Charlotte Gainsbourg – cai então em forte depressão. Seu marido – com a eterna cara de mau de Willem Dafoe – é terapeuta. Passa a ajudá-la a superar a crise como se fosse um de seus pacientes. Propõe que eles fiquem um tempo em Éden, uma casa em meio à uma densa e isolada floresta que para ela representa medo. E para ele, a mulher tem que estar frente ao medo e encará-lo para se curar. Contudo apesar de o filme começar por esta via – a morte do filho – ao longo da trajetória da narrativa isto vai se tornando mais um efeito do que uma causa da loucura da personagem. Começamos a pensar então a questão desta mulher. Como fora dito acima, a mulher ainda é uma incógnita. Na psicanálise contemporânea, as condições do corpo feminino e do inconsciente da mulher devem pertencer a ela; contudo as ferramentas para tal parecem distantes do alcance. No final do século XIX, Freud morreu ainda tentando delimitar mais claramente a identidade e expressão da feminilidade - alguns dizem que ele dava pouca importância à questão da mulher. Para Lacan (sempre relendo em Freud) a Mulher não existe. A psicanálise reconhece esse lugar como um mistério. De forma falocêntrica, importante ressaltar. Resumindo: ao perceber (por volta dos 4 ou 5 anos) que a vagina parece ser a ausência do pênis, passa a configurar para a menina a fantasia da castração. Para o homem há um objeto que o delimite claramente (o pênis, objeto de inveja e submissão da mulher), mas para a mulher o que irá representá-la? Não disse acima que a psicanálise soa falocêntrica ao centralizar a condição da falta no pênis. E o que é pior: ao transpormos para outra forma de dizer, soa como se o homem recebesse reconhecimento, mas e a mulher - sem nenhum reconhecimento - tão vazia? Neste caso podemos dizer que é perceptível que a interpretação da psicanálise é uma forma de ver inserida no contexto do patriarcado. De vazio, todas as vidas estão cheias. Mas, seguindo com o raciocínio da psicanálise, o que a criança - independentemente da expressão do gênero que tenha - procura é isso: reconhecimento e identidade. A mulher, em tempos de patriarcado também procura, mas não encontra. Um vestido, um peito, uma bunda, um cílio, um cabelo, uma unha, o silêncio, entre outras coisas. Tudo o que as feministas da década de 60 lutavam contra. Enfim, uma característica que no final das contas a faça ser desejante, potente e única. Nós feministas sabemos que não vale nada um diploma ou um cargo de liderança sem que sejamos e estejamos juntas na luta contra códigos que nos impedem de exercer nossa liberdade. Cílios não são inúteis, mas a luta afirmativa é árdua e devemos ter em mãos ferramentas múltiplas. Estratégias de luta, organização, metodologias e projetos de sociedade caem bem. Com efeito, este não é um processo de fora pra dentro, é de dentro pra fora que uma mulher se faz uma mulher. Tornar-se mulher é um processo constante, cuja centralidade passa pelo poder de se expressar, escolher e existir que deve ser exercida pela mulher, dona de sua subjetividade,de seu prazer, de sua construção do espaço social e de sua vida particular.
“A mulher é a rainha do mundo e a escrava de um desejo”, já nos dizia Honoré de Balzac que, apesar de suas tirânicas idéias políticas, compreendeu bem a dor de ser mulher de viver em vias de desparecer. E aí está nossa personagem e sua dor. A de ser, existir. Desejo no sentido psicanalítico consiste em fazer uma busca por quem somos. Alguns têm dito por aí que é uma busca constante. É sempre um desencontro. Desejo é então movimento, criatividade e vida ao ter que explorar o vazio do desencontro na busca pelo o que perdeu. O marido vivido por Dafoe estava sempre mais preocupado com o trabalho e sua participação na vida familiar era nula. Sua esposa somente consegue a atenção dele após a morte do filho. Ele passa a tratá-la como a um de seus pacientes. Ela, perdida sempre em busca de algum encontro com o marido. Acreditava que o tinha no sexo e por isso sua relação com o ato se mostra quase patológica como percebemos ao longo do filme. Mais uma vez, impedida de desejar. Com o passar do tempo sua perda de lucidez começa a se intensificar à medida que o marido vai descobrindo coisas sobre ela e se distanciando. Ela então se entrega ao que há de mais obscuro e irracional. Expressando esta situação ela vai às vias de fato e corta o falo dele. Sempre oscilando entre o amor e ódio. A mulher presa na impossibilidade de desejar enlouquece e ataca o que mais a fragiliza. O caos reina. Tudo isso com uma plasticidade primorosa e uma direção de fotografia excepcional (desde a cena inicial do filme) de Antony Dod Mantle. Que pena que teve que sair assim. Porque a mulher precisa sempre agir assim para se libertar? Isso não deixa de ser uma visão que é impregnada de machismo e misoginia. A violência como narrativa é comum no contexto do patriarcado. Se a mulher é um mistério para psicanalistas tão abrangentes em seus estudos, como Freud e Lacan, talvez seja porque não é possível um homem saber o que faz uma mulher ser uma mulher. Só ela mesma pode fazer isso por ela. E não é pirando ou se tornando uma assassina. A nossa subversão é por respeito e dignidade, equidade de direitos e liberdade de escolha. O que historicamente por diversas vezes foi, e ainda é negado. 
Na história do cinema diversos foram os filmes que buscaram retratar a mulher e sua dor em sê-la. Um filme que podemos lembrar pela tristeza de sua personagem principal é “ A História de Adele H.” – do não menos genial e controverso – já falecido Truffaut. O filme conta como a filha de Victor Hugo enlouquece de amor enquanto persegue o objeto de sua obsessão: um oficial inglês que não corresponde aos seu sentimentos. Podemos também citar a ópera “Carmen” de Bizet. Neste caso a mulher figurada sob a máscara da femme fatalle. Aquela que desdenha os homens. Seduz e depois larga. Trata-se então de uma pseudo emancipação desta condição de ser e desejar. Pois apesar de aparentemente não aceitar se submeter aos mandos dos homens, está aprisionada ao desejo. Com efeito, “Anticristo” nos mostrou este lado da mulher, do jeito que o homem vê!  Não é à toa que no filme circunda o tema da bruxaria. Quem sabe então bruxas eram, além daquelas que sabiam a ciência das ervas e se colocavam antagônicas ao poder absoluto da Igreja, também as mulheres sofridas que não sabiam lidar com a sua condição feminina, e estavam em busca de se tornarem as mulheres que queriam ser. "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher", já dizia Simone de Beauvoir.
Fica a questão no ar e um vazio depois de assistir o filme. Parabéns àqueles homens que conseguiram compreender um pouco a mulher, se tornam companheiros delas nessa difícil jornada de ser que se quer ser e como se quer existir. Parabéns principalmente às mulheres que conseguem perceber que se emancipar não é se tornar a diretora geral de uma multinacional e sim se libertar desta eterna busca por ser aceita por uma sociedade que delimita ainda padrões de comportamento, quando nós deveríamos ter plena possibilidade de escolha frente aos nossos desejos, prazeres e demandas básicas no que concerne ao processo de se tronar mulher. Mulher não, mulheres. São muitas e diversas. Cada vez menos dispersas. Que todas possam acessar a verdade de seu desejo e acessar suas ferramentas de sistematização da liberdade.

2 comentários:

  1. Teresa Mourajunho 14, 2010

    Como temos a capacidade, mesmo que em latência , de perceber além daquilo que querem que que vejamos, me indicaram "Estamira" para assistir. Será que não é um antídoto?
    bjs
    Parabéns pelo blog!
    Teresa Moura

    ResponderExcluir
  2. oi,
    Já faz um tempinho que vi este filme, mas me lembro que me suscitou muitos questionamentos, ideias, e boas conexões! Uma das perguntas (para a qual posso até esboçar um resposta)é, e vc menciona isto no seu texto, 'por que a maioria dos espectores aguentam assitir maquina mortifera e milhares de outros do genero, e saem no meio do excelente filme de Lars Von
    Trier?'

    ResponderExcluir