'E a primeira vez
que vemos um Truffaut em technicolor. 'E a única vez em que vemos um Truffaut em
inglês. Neste filme vemos um Truffaut, mais uma vez, adaptando um livro para um roteiro de cinema. O
adaptado livro inspira um filme homônimo: “Fahrenheit 451”. Foi escrito por Ray
Bradbury em 1953; este autor é bastante conhecido no mundo da ficção científica.
Chegou a ajudar e criar projeto para os parques da Disney nos EUA e na França.
Mas em sua lápide[1] pediu
que fosse marcado “Autor de Fahrenheit” – dizem por aí. Seria um pedido pra que
não esqueçamos os livros? Seria um saudosista? Ele leria o “Homem
Unidimensional” de – Herbert Marcuse – em um tablet? Acho que eu seria este
livro caso conseguisse fugir com um, como acontece no filme... Ou seria algum livro de poemas da Florbela
Espanca. Quem ao ver o filme não pensou em que livro se tornaria?
Com efeito, não devemos esquecer que
no ano em que foi escrito, a mídia estava em um clima de reconstrução. Afinal,
o clima de reestruturação pós-guerra delimita novos rumos ideológicos. Foi um
período historicamente marcado por diversos movimentos políticos de libertação
de regimes fascistas e ditatoriais. Condicionar o imaginário popular era uma
das diretrizes do “mass media”. Alto desenvolvimento tecnológico e uma industrialização
de tudo. A televisão se torna uma vitrine. Ao mesmo tempo em que se
disseminavam as divas do Cinema Norte-americano, por exemplo: Marilyn Monroe,
Liz Taylor, Audrey Hepburn, Ava Gardner, Grace Kelly e Rita Hayworth.
Já nos créditos iniciais o autor/
cineasta, Truffaut mostra sua filiação à Nouvelle Vague, bem como o fato de ser
um dos pioneiros a defender e pensar o cinema como obra de um autor[2].
Além de não usar cartelas escritas nos créditos iniciais, e sim uma voz off (quebrando
um pouco as referencias usuais); faz o que dizem que os cineastas fazem: pensa
por imagens. Simplesmente começar o filme com stills de antenas, é traduzir em
imagem parte do argumento do livro pelo seu autor do livro[3]. Depois das antenas, os primeiros
enquadramentos do filme – acompanhar o carro dos bombeiros – parecem bastante
condizentes e previsíveis; mas logo na cena seguinte – no apartamento a ser
revistado pelos bombeiros – usa-se um zoom em etapas, fragmentado e misterioso.
Voltando à questão dos percursos nas imagens: por exemplo, pode-se perceber que
os enquadramentos escolhidos para os trajetos e percursos no filme são em linha
reta e por trilhas, o que nos remete à uma maneira cinematográfica de expressar
uma vida cerceada por um regime totalitarista. Mais uma vez pensando por
imagens.
Ao longo
do filme vemos o Truffaut da Nouvelle Vague, mas não o Truffaut de Godard. Isso
porque, ainda que Truffaut utilize artifícios de montagem, ritmo, enquadramentos
e estética, tal qual o fez na Nouvelle Vague, fica cada vez mais explanado o
distanciamento do seu cinema e o de Godard. Enquanto Godard experimenta e aponta
para o devir de uma imagem; Truffaut parte para ser um belo contador de
histórias. Mas sem muita ousadia. Utiliza a cartilha gramatical cinematográfica
brilhantemente, mas não ousa. Busca um cinema das sensações. A busca em criar
uma atmosfera de suspense é tanta que temos como músico do filme ninguém menos
do que o criador da trilha de Psicose (Bernard Hermann). Vale ressaltar que
Hitchcock era o ídolo de Truffaut.
Eis que
começa a história. Que é altamente atual. Naquela época, o totalitarismo era
mais revelado. Enquanto hoje em dia o totalitarismo é velado. Mas enfim, o
encontro com Clarisse já é tenso. Ela fala sem parar, e é professora.
Impossível ela não ler. Mas ela não confessa em nenhum momento ser uma leitora.
E o espectador só vai ter certeza mais tarde; embora já aguardasse tal
informação. Este encontro, na verdade já mexe com o bombeiro atiçador de fogo
Montag. Ela quer saber porque ele queima livros...
CLARISSE
Diga-me,
porque queima livros?
MONTAG
O quê?
Bem, é um trabalho
como qualquer outro.
[...]
CLARISSE
- Então não gosta de livros?
MONTAG
- Gosta da chuva?
CLARISSE
- Sim, adoro-a.
MONTAG
Os livros apenas são... lixo.
Não têm interesse nenhum.
CLARISSE
Então, porque é que ainda há
pessoas que os lêem sendo tão perigoso?
MONTAG
Precisamente porque é proibido.
CLARISSE
Porque é que é proibido?
MONTAG
Porque faz as pessoas
ficarem descontentes.
CLARISSE
Acredita nisso, realmente?
MONTAG
Oh, sim. Os livros
alteram as pessoas.
Tornam-nas anti-sociais.
CLARISSE
Acha que eu
sou anti-social?
MONTAG
Porque pergunta?
CLARISSE
Bem... sou professora.
Este diálogo é incrível e, no final das contas
nos leva a perceber que o mesmo motivo que faz com que os livros sejam
condenados, é o que faz Montag tomar gosto pela leitura. O papel da cultura
para Jose Martí é permitir que sejamos livres. ‘Um pueblo de hombres educados
será siempre um pueblo de hombres libres.” Neste lugar fictício até os
quadrinhos são sem palavras.
Não demora muito pra que o quase promovido
bombeiro passe a se interessar por palavras. È inevitável – como espectador –
não tentar ler todos os títulos dos livros com destino às cinzas. E agora também
dos que Montag elege para leitura. O primeiro é David Copperfield de Charles
Dickens. “Capítulo Um. Eu Nasci. Entre ser eu
o herói da minha própria vida, ou essa posição ser ocupada por outra pessoa,
estas páginas o irão mostrar." Conforme ele lê o espectador se torna o
próprio Montag. E o próprio Montag leitor vira David Copperfield... A câmera
cada vez aproxima do livro. È eficiente a forma com que Truffaut busca envolver
o espectador com sua história. Assim como o leitor se torna o livro...
Um povo
sem escrita é um povo sem memória. E um dos símbolos da memória é a biblioteca.
O escritor argentino Jorge Luis Borges cita em um seminário a Biblioteca de
Alexandria como “memória da humanidade”. De fato, não podia deixar de ter uma
biblioteca no filme. E é na casa da professora Clarisse. A discussão que se
trava entre Montag e o General do quartel é ótima. O General já discursa contra
os livros: “Livros não dizem nada”. Mas vemos um exemplar de “Madame Bovary”. O
chefe dos bombeiros ainda critica a filosofia e diz que esta é pior do que os
romances, pois filósofos julgam saber mais. Compara a filosofia à efemeridade
da moda. Somente haverá felicidade caso todos em uma sociedade forem iguais,
diz o general. Dentre todos os livros que devem ser queimados, claro não podia
deixar de ter “Mein Kampf” como menção aos regimes ditatoriais. Pró-liberdade,
temos “Joana D’arc”. O livro aparece mais de uma vez na fogueira de letrinhas
na casa da professora. A senhora morre “na fogueira”, à semelhança das mulheres
consideradas bruxas durante a inquisição, e de Joana D’Arc. Não menos curioso é
o fato de notarmos um exemplar da Carriere du Cinema em meio às chamas. Irmãos
Karamazov e Lolita também viram cinzas.
É até
previsível que a mulher de Montag o tenha denunciado. Ainda mais depois que
Montag fez uma amiga dela chorar em sua casa ao ler um livro. A mulher é a
parte dos cidadãos amansados pelos ecrãs (televisões). Viciada em pílulas ora
estimulantes, ora calmantes, a esposa de Montag representa o oposto de
Clarisse. A apatia e aceitação.
Mas o grande momento pra mim se dá quando o
ex-bombeiro quase promovido que atiçava fogo nos (subversivos) livros, revela
qual sua nova identidade: “Tales Of Mistery And Imagination” de Edgar Allen
Poe. Existe a expressão “decorei o texto de “cór” (coeur)”. Quer dizer de
coração; “couer” é coração em francês. O fogo é enfim libertador...
[1] Faleceu
neste ano, de 2012. Em 6 de junho.
[2] Cinema
de autor foi uma teoria defendida pelos integrantes da nouvelle vague, cuja
figura do Diretor comanda todas as áreas, de modo a deixar uma marca própria em
cada filme.
[3] Ray
Bradbury declarou certa vez que seu livro pretende alertar para a diminuição de
leitores em detrimento de telespectadores.
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