Fahrenheit 451 - Françoise Truffaut


           'E a primeira vez que vemos um Truffaut em technicolor. 'E a única vez em que vemos um Truffaut em inglês. Neste filme vemos um Truffaut, mais uma vez, adaptando um livro para um roteiro de cinema. O adaptado livro inspira um filme homônimo: “Fahrenheit 451”. Foi escrito por Ray Bradbury em 1953; este autor é bastante conhecido no mundo da ficção científica. Chegou a ajudar e criar projeto para os parques da Disney nos EUA e na França. Mas em sua lápide[1] pediu que fosse marcado “Autor de Fahrenheit” – dizem por aí. Seria um pedido pra que não esqueçamos os livros? Seria um saudosista? Ele leria o “Homem Unidimensional” de – Herbert Marcuse – em um tablet? Acho que eu seria este livro caso conseguisse fugir com um, como acontece no filme...  Ou seria algum livro de poemas da Florbela Espanca. Quem ao ver o filme não pensou em que livro se tornaria?
            Com efeito, não devemos esquecer que no ano em que foi escrito, a mídia estava em um clima de reconstrução. Afinal, o clima de reestruturação pós-guerra delimita novos rumos ideológicos. Foi um período historicamente marcado por diversos movimentos políticos de libertação de regimes fascistas e ditatoriais. Condicionar o imaginário popular era uma das diretrizes do “mass media”. Alto desenvolvimento tecnológico e uma industrialização de tudo. A televisão se torna uma vitrine. Ao mesmo tempo em que se disseminavam as divas do Cinema Norte-americano, por exemplo: Marilyn Monroe, Liz Taylor, Audrey Hepburn, Ava Gardner, Grace Kelly e Rita Hayworth.
            Já nos créditos iniciais o autor/ cineasta, Truffaut mostra sua filiação à Nouvelle Vague, bem como o fato de ser um dos pioneiros a defender e pensar o cinema como obra de um autor[2]. Além de não usar cartelas escritas nos créditos iniciais, e sim uma voz off (quebrando um pouco as referencias usuais); faz o que dizem que os cineastas fazem: pensa por imagens. Simplesmente começar o filme com stills de antenas, é traduzir em imagem parte do argumento do livro pelo seu autor do livro[3].  Depois das antenas, os primeiros enquadramentos do filme – acompanhar o carro dos bombeiros – parecem bastante condizentes e previsíveis; mas logo na cena seguinte – no apartamento a ser revistado pelos bombeiros – usa-se um zoom em etapas, fragmentado e misterioso. Voltando à questão dos percursos nas imagens: por exemplo, pode-se perceber que os enquadramentos escolhidos para os trajetos e percursos no filme são em linha reta e por trilhas, o que nos remete à uma maneira cinematográfica de expressar uma vida cerceada por um regime totalitarista. Mais uma vez pensando por imagens.
            Ao longo do filme vemos o Truffaut da Nouvelle Vague, mas não o Truffaut de Godard. Isso porque, ainda que Truffaut utilize artifícios de montagem, ritmo, enquadramentos e estética, tal qual o fez na Nouvelle Vague, fica cada vez mais explanado o distanciamento do seu cinema e o de Godard. Enquanto Godard experimenta e aponta para o devir de uma imagem; Truffaut parte para ser um belo contador de histórias. Mas sem muita ousadia. Utiliza a cartilha gramatical cinematográfica brilhantemente, mas não ousa. Busca um cinema das sensações. A busca em criar uma atmosfera de suspense é tanta que temos como músico do filme ninguém menos do que o criador da trilha de Psicose (Bernard Hermann). Vale ressaltar que Hitchcock era o ídolo de Truffaut.
            Eis que começa a história. Que é altamente atual. Naquela época, o totalitarismo era mais revelado. Enquanto hoje em dia o totalitarismo é velado. Mas enfim, o encontro com Clarisse já é tenso. Ela fala sem parar, e é professora. Impossível ela não ler. Mas ela não confessa em nenhum momento ser uma leitora. E o espectador só vai ter certeza mais tarde; embora já aguardasse tal informação. Este encontro, na verdade já mexe com o bombeiro atiçador de fogo Montag. Ela quer saber porque ele queima livros...

CLARISSE
Diga-me,
porque queima livros?

MONTAG
O quê?
Bem, é um trabalho
como qualquer outro.
[...]

CLARISSE
- Então não gosta de livros?

MONTAG
- Gosta da chuva?

CLARISSE
- Sim, adoro-a.

MONTAG
Os livros apenas são... lixo.
Não têm interesse nenhum.

CLARISSE
Então, porque é que ainda há
pessoas que os lêem sendo tão perigoso?

MONTAG
Precisamente porque é proibido.

CLARISSE
Porque é que é proibido?

MONTAG
Porque faz as pessoas
ficarem descontentes.

CLARISSE
Acredita nisso, realmente?

MONTAG
Oh, sim. Os livros
alteram as pessoas.
Tornam-nas anti-sociais.

CLARISSE
Acha que eu
sou anti-social?

MONTAG
Porque pergunta?

CLARISSE
Bem... sou professora.

Este diálogo é incrível e, no final das contas nos leva a perceber que o mesmo motivo que faz com que os livros sejam condenados, é o que faz Montag tomar gosto pela leitura. O papel da cultura para Jose Martí é permitir que sejamos livres. ‘Um pueblo de hombres educados será siempre um pueblo de hombres libres.” Neste lugar fictício até os quadrinhos são sem palavras.
Não demora muito pra que o quase promovido bombeiro passe a se interessar por palavras. È inevitável – como espectador – não tentar ler todos os títulos dos livros com destino às cinzas. E agora também dos que Montag elege para leitura. O primeiro é David Copperfield de Charles Dickens. “Capítulo Um. Eu Nasci. Entre ser eu o herói da minha própria vida, ou essa posição ser ocupada por outra pessoa, estas páginas o irão mostrar." Conforme ele lê o espectador se torna o próprio Montag. E o próprio Montag leitor vira David Copperfield... A câmera cada vez aproxima do livro. È eficiente a forma com que Truffaut busca envolver o espectador com sua história. Assim como o leitor se torna o livro...
            Um povo sem escrita é um povo sem memória. E um dos símbolos da memória é a biblioteca. O escritor argentino Jorge Luis Borges cita em um seminário a Biblioteca de Alexandria como “memória da humanidade”. De fato, não podia deixar de ter uma biblioteca no filme. E é na casa da professora Clarisse. A discussão que se trava entre Montag e o General do quartel é ótima. O General já discursa contra os livros: “Livros não dizem nada”. Mas vemos um exemplar de “Madame Bovary”. O chefe dos bombeiros ainda critica a filosofia e diz que esta é pior do que os romances, pois filósofos julgam saber mais. Compara a filosofia à efemeridade da moda. Somente haverá felicidade caso todos em uma sociedade forem iguais, diz o general. Dentre todos os livros que devem ser queimados, claro não podia deixar de ter “Mein Kampf” como menção aos regimes ditatoriais. Pró-liberdade, temos “Joana D’arc”. O livro aparece mais de uma vez na fogueira de letrinhas na casa da professora. A senhora morre “na fogueira”, à semelhança das mulheres consideradas bruxas durante a inquisição, e de Joana D’Arc. Não menos curioso é o fato de notarmos um exemplar da Carriere du Cinema em meio às chamas. Irmãos Karamazov e Lolita também viram cinzas.
            É até previsível que a mulher de Montag o tenha denunciado. Ainda mais depois que Montag fez uma amiga dela chorar em sua casa ao ler um livro. A mulher é a parte dos cidadãos amansados pelos ecrãs (televisões). Viciada em pílulas ora estimulantes, ora calmantes, a esposa de Montag representa o oposto de Clarisse. A apatia e aceitação.
Mas o grande momento pra mim se dá quando o ex-bombeiro quase promovido que atiçava fogo nos (subversivos) livros, revela qual sua nova identidade: “Tales Of Mistery And Imagination” de Edgar Allen Poe. Existe a expressão “decorei o texto de “cór” (coeur)”. Quer dizer de coração; “couer” é coração em francês. O fogo é enfim libertador...



[1] Faleceu neste ano, de 2012. Em 6 de junho.
[2] Cinema de autor foi uma teoria defendida pelos integrantes da nouvelle vague, cuja figura do Diretor comanda todas as áreas, de modo a deixar uma marca própria em cada filme.
[3] Ray Bradbury declarou certa vez que seu livro pretende alertar para a diminuição de leitores em detrimento de telespectadores.

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